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Tive, durante dois dias, o meu mais querido amigo instalado no meu apartamento.
É um moreno gigantesco, de caracóis soltos, pretos e descontrolados, barba que cresce numa preguiça organizada, olhos rasgados e negros, como lagos sem fundo e sem limites, e um corpo de quem pratica pólo aquático desde miúdo. Uma quantidade brutal de feromonas ambulantes.
É um dos homens mais inteligentes que conheço. Professor numa faculdade de prestígio internacional, lecciona uma disciplina que é considerada demoníaca pela população estudantil e é um dos mais solicitados e conceituados consultores na área que domina.
Partiu hoje, ao início da manhã, arrastando seu eterno mau humor pela pista do aeroporto.
Durante estes dois preciosos dias acomodou-se e organizou-se como se o meu humilde covil fosse o seu natural habitat.
Desde as minhas almofadas favoritas, à minha manta de lã, ao meu gel de banho, ao meu computador (que açambarcou como se não houvesse amanhã e não existisse o dele), ao meu cadeirão preferido, à minha pequena biblioteca, passando por todo o meu arsenal de cremes e loções, o monopolizar foi geral.
Tudo lhe foi perdoado, porque é rara a cumplicidade que me faz sentir que posso estar em silêncio junto de alguém, durante horas, sem a menor réstia de constrangimento.
Há, no entanto, uma pequena característica neste homem fabuloso que me deixa abespinhada.
O uso abusivo, matreiro e traiçoeiro, que faz da primeira pessoa do plural dos verbos de todas as frases que implicam trabalho:
- Temos de cozinhar qualquer coisa!
Das frases que sugerem uma amabilidade conivente:
- Hoje não lavamos o cabelinho, pois não?
Das frases que insinuam algum incómodo e alguma ambiguidade:
- Temos de convidar o teu professor de Literatura Medieval. Aquele com quem tivemos um caso desgraçado e que nos chumbou por despeito.
Das frases que ajudam a patentear um fracasso:
- Não vamos saber, nunca, o que seria se continuássemos em Paris.
É de nos arrasar os nervos.
Não nos iludamos, raparigas, a maioria dos homens usa este subterfúgio para escapar às mais minúsculas, mais pindéricas e mais corriqueiras das tarefas e quase todos eles tentam mascarar ou ocultar as críticas mais irritantes que nos fazem ou desviar as desagradáveis obrigações que julgam ter, tornando-nos parceiras forçadas das maçadas que lhes surgem pela frente.
A solução que encontrei consiste em não ouvir aquilo que não é dirigido especificamente a mim, com o verbo na segunda pessoa do singular.
Não resulta em todas as situações, mas acalma a minha vontade de o electrocutar com o enrolador de pestanas.
Convém não esquecer que esta maldita característica é extensiva aos hetero.