Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Passo todos os dias por um esconso e velho café encardido que me bate logo pela manhã com um cheiro de fritos mal a porta abre para deixar passar o dono, musculado e bazófia, com as cadeiras de plástico branco da esplanada curta.
A porta do café encardido serve de montra de obituários. Aparecem vastas vezes colados ao vidro os anúncios de morte. Papéis A4 onde a fotografia de alguém encima a notícia, fornecendo ao mesmo tempo, entre parênteses, as datas do início e do fim do retratado, logo seguida da indicação da idade - para evitar fazer contas -, e os agradecimentos da família que informa o local das exéquias e a data da missa do sétimo dia.
Já vi, colados ali ao mesmo tempo, quatro avisos, uns ao lado dos outros. Lembrei-me de eleições. Não sei porquê.
Sempre me surpreendeu que um café encardido e vadio tenha esta vocação, mas disseram-me que era hábito nas terras pequenas colar nos estabelecimentos anúncios de gente que passou para o outro lado de modo a que mesmo os vagos conhecidos fiquem a saber desse desfecho.
Sempre me atraíram estes anúncios tétricos que mostram gente que sorri numa fotografia tipo passe ou naquela mais bonita, que favorece, tirada por um profissional, ou a outra, que foi captada quando havia tempo para se estudar a pose.
Paro e leio.
Preocupa-me com a idade dos que morreram - as fotografias nem sempre revelam a contabilidade da vida que acabou -, como se a velhice me concedesse uma surpresa menor, de menor qualidade, de menor hipocrisia.
Era já velho – perdoo à morte.
E era tão novo quando me deparo com o extremo oposto.
Nunca reconheci ninguém, mas sinto que me cruzei algures com todos. Perscruto a ruga na união das sobrancelhas, o trejeito no lábio, o desenho dos olhos, o sinal na bochecha, a verruga na testa, a mais ínfima pista que me indique o lugar onde aquela fotografia passou por mim ainda viva. Nunca os vi. Não me lembro de os ter visto. Nunca me viram. Não me lembro de os ter visto a ver-me. A vida deles passou-se longe da minha e é apenas o anúncio colado na porta do café encardido que me faz chegar ao sítio onde pararam.
Fico a pensar que muitas vezes, demasiadas vezes, ficamos de repente a olhar alguém que caminha ao nosso lado - vivo e ao nosso lado, regulando os passos pelos nossos, interrompendo o movimento dos braços com abraços -, e a descobrir que olhamos para um anúncio de morte colado na porta do café da nossa alma encardida e que nunca conhecemos o rosto de quem naquele instante é percebido findo.
Às vezes, penso que a vida é aquele velho café encardido a cheirar a fritos logo pela manhã, onde Caronte vai montando a esplanada curta com cadeiras de plástico, e que não somos mais do que anúncios que vai colando depois no vidro da porta.