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O calor desabou.
Há duas semanas que sentia que poderia se me calasse passar despercebida e escapar às labaredas.
Sentava-se num dos bancos de pedra que rodeiam a cisterna e ficava quieta a ouvir a sombra a trepar pelas árvores frias. Começava a erguer-se do chão, tingindo-o de cinzento. Alastrava até encher a água de chumbo picotado pelo vermelho das carpas asfixiadas que vinham abrir a boca à superfície. Depois, como bicho insidioso, a sombra enlaçava os troncos dos teixos. Sentia o barulho rumorejante desse trepar irreversível.
As mãos da sombra são frias. Tocavam-me nos pés, nas mãos, na boca, e imobilizavam as palavras e os gestos e mesmo o toque ínfimo do fio de água que alimenta a cisterna se estilhaçava na pele líquida com a invisibilidade da finitude. Mergulhava nesta descoloração com a beatitude dos que desistem, com a aceitação dos suicidas e deixava que a consciência da minha morte crescesse indolor.
Dentro de mim, a morte vai crescendo igual à sombra da cisterna e a placidez deste facto tranquiliza-me, como me apazigua a sombra a crescer nos teixos frios.
Agora o calor desabou e um pavão destrói a obscuridade com o grito de jóias estridentes.