Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Eram brancos os jogos de lençóis que a Jacinta trazia todos os Sábados das arcas para os quartos de cima.
Brancos, sempre brancos, brancos que de tão brancos doíam.
Alguns tinham bordados a cheio na dobra que expunham. Flores ou frisos a ondular arabescos que as fronhas repetiam. Outros eram rendas. Entremeios urdidos à mão, brancos, brancos, no negrume de Inverno.
- Vá brincar, menina. Vá apanhar sol e deixe trabalhar quem sabe.
A Jacinta abria as asas de lençóis sobre as camas como quem atira redes de pesca aos mares sossegados das manhãs de Sábado. Cheiravam bem essas manhãs. A linho lavado, a sabonete e a alfazema que a Jacinta guardava em saquinhos laçados com fitinhas de cetim nas arcas dos lençóis brancos a doer.
Ficava a ver aqueles pássaros largos de asas, a abrirem o breve voo sobre os ninhos. Fechava os olhos. Pelos olhos fechados aspirava o odor daquele esvoaçar lavado e de açucenas.
Quarto após quarto, após quarto, após quarto. Seguia-lhe os passos. Os lençóis brancos a dardejar bordados.
- Vá brincar lá para fora com os manos, menina!
A luz do lá fora pelas janelas. Reflectida no voo dos pássaros como penas. O cheiro a luz lavada e a saquinhos de alfazema.
- Ajude então com as fronhas, menina. Vá lá Deus saber porque é que o avozinho a deixa aqui, a andar atrás de mim - e sorria, parada por instantes, de mãos cruzadas no regaço de onde a ternura subia até aos olhos.
Chorou neste Sábado.
Ouvi-lhe as lágrimas como lençóis abertos e doridos.
Entrei devagarinho no quarto e vi-a sentada na cama que foi da minha avó. De mãos em concha, uma por cima da outra, num abandono branco e envelhecido.
Tinha-se enganado. Foi sem querer. Nem sequer pensou. Não sabe como aconteceu aquilo. Foi o hábito. É a velhice, menina.
Chorava tanto.
Ajoelhei-me. De joelhos venero imagens santas.
Entrou ali para mudar lençóis que não se mudam, mudos os que ficaram inúteis como trapos, e ficou ali a desfraldar, a apalmar, a estender saudade.
- Faz-me tanta falta - treme. É frio.
Abro a gaveta. Retiro o xaile que a minha avó usava nos entardeceres mais ásperos de negritude em que as crianças não brincam lá fora.
Sento-me na cama, pouso as minhas mãos na concha das mãos enrugadas da Jacinta e as duas cobertas pelo xaile, sorrimos baixinho, baixinho, baixinho, para não inquietar as lágrimas.
- Vá, Jacinta, anda. Eu ajudo com as fronhas.