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Lembro-me perfeitamente da D. Arminda.
Costureira, vinha por socalcos infindos, arranjar umas coisinhas a casa dos meus avós. O costume era mantido apesar de já não fazer sentido, porque a sua mãe o tinha respeitado e antes dela a sua avó. Dedicava-se, na falta de umas coisinhas para arranjar, a tagarelar com toda a gente e a choramingar o seu amor violento.
A D. Arminda não era uma frágil flor campestre. Era colossal. Maior do que um embondeiro e com a força de um touro. Não hesitava em pegar nos cestos que nas vindimas retraíam qualquer um. Tinha braços imponentes, ancas hemisféricas, um peito descomunal e era capaz de arrancar a cabeça com um safanão aos rapazitos que lhe tentavam beliscar as nádegas baloiçantes de trintona robusta.
Tinha casado com um minúsculo bichinho, um homem fuinhas, mexeriqueiro, franzino, fanfarrão e oleoso que a espancava amiúde.
Chorava, desabafando mágoas e hematomas ao lado da minha avó que constantemente lhe prometia abrigo e protecção.
Mas o amor não deixava.
Numa dessas ocasiões de pranto desatado, a minha avó ultrapassou todas as regras da sua compostura habitual e, desenfreada e sem paciência, destruindo a fleuma aristocrática que tanto preza, fez deslizar o pé para o chinelo e descabelada vociferou:
-Se a Arminda se recusa a largar essa pevide, faça-me o favor de com esse corpanzil lhe partir a casca fedorenta na próxima vez que o homenzinho se atrever a tocar-lhe. Valha-me Deus, Arminda! A criatura é uma migalha no seu açafate!
O pranto estancou estupefacto, não tanto pelo conselho, mas sobretudo porque a minha avó se tinha posto aos gritos.
- Só não pedi ainda ao Joaquim para tratar do assunto, porque sei como o homem gosta de matar os porcos – aquilo é assustador! -, e porque não quero mais uma vez ter de fazer de conta que ouço as insinuações do idiota do padre.
Dias depois do sonoro e ligeiramente mafioso deslize da minha avó, a D. Arminda chegou triunfante, aureolada e ufana. O minúsculo parceiro tinha finalmente entendido que seguir um conselho de uma senhora irritada lhe podia a curto prazo fazer saltar dois dentes, mesmo que para isso tenha existido a preciosa ajuda de uma panela de pressão ali mesmo à mão de semear.
Nunca aquele casamento, como sem os dentes da frente, se viu tão abençoado por um entendimento cordial que se manteve incólume até ao dia em a D. Arminda trocou a migalha pela broa inteira e se uniu ao Joaquim, escândalo que deu que falar e que fez a minha avó deixar de ir à missa.
Não é de todo generalizável este pequeno episódio telúrico e é perigossíssimo tentar a ousadia, sobretudo sabendo que há conselhos dados que não partem dentes, mas não haverá por aí um Joaquim qualquer disposto a tratar das mandíbulas de Manuel Maria Carrilho?
Da Bárbara Guimarães trata a minha avó.