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A porta que permite acesso ao quarto da minha irmã abre-se com estrondo.
O barulho estala dentro das miseráveis cinco horas da manhã, depois de uma viagem que apesar de breve me cansou o corpo e me esgotou por completo a capacidade de me manter acordada. Traz duas caixas cor de creme com o logo da Cerruti. Atira-as para cima da cama de modo a que me atinjam a cabeça e me despertem com a sensação de ter sido alvo de atentado terrorista. Afasta os pesados cortinados de veludo e deixa que uma luzinha enevoada e baça se permita invadir, sorrateira e tímida, o meu sono desfeito. Senta-se depois na poltrona e retira um cigarro que não vai acender porque tenta deixar de fumar.
Usa um vestido azul negrume que a torna mais esguia. A gola laçada valoriza o pescoço quase demasiado alto e o cabelo preso numa arquitectura complexa consente que os olhos pardos descubram os mais subtis cambiantes de cinzas azuladas.
- Está na hora de te preparar. Levanta-te. Quero que vistas o que trago.
Sonolento espanto o meu, sentada num despertar de trombeta e de Cerruti.
- É cedo demais!
Arranca-me da cama e empurra o meu corpo extenuado.
- Não, minha querida. Paris tem a cor do ocre envelhecido. É laranja e branca, suja e corroída. Só nas primeiras horas, à luz recém-nascida, tem a cor precisa, anilada e cinza. Tens de ver a cor dos príncipes perfeitos.
Convence-me. Quero ver às cinco da manhã, as cinzas aniladas da cidade.
Ergo-me no exacto instante em que a minha irmã desata a abrir as caixas. É-me indiferente o que traz lá dentro. Seja o que for, é aquilo que precisa para compor a imagem de mulher que passa pelas ruas de todas as cidades como se todas as ruas de todas as cidades fossem sempre aquela que passa a vida inteira a atravessar.
Volto molhada embrulhada na toalha.
- Agora tens de te vestir.
Tento apanhar os jeans. Impede.
- Não. Paris é um lugar subtil. Não se vai deixar morrer de amor por ti, se tu não fores exacta.
Não entendo.
Tapa-me o espelho do meu quarto, fazendo-o rodar contra a parede.
- Paris é uma cidade de reflexos e tu serás como ela quer e te deseja. Nenhuma cidade foi tão igual a ti.
Sorri.
Arranca-me a toalha da cintura. Estou molhada, nua e estupefacta.
Enfia-me uma blusa de seda anil nocturno, justa, de gola masculina, mangas compridas a ocultar as mãos. Empurra-me e obriga-me a vestir umas calças de linho e seda, com de ferrugem com lanhos de um azul quase imperceptível. São estreitas, tubulares, exemplares, perfeitas. Da segunda caixa retira uns sapatos clássicos, picotados, de couro imaculado, conservadores e preconceituosos.
Deixo-me vestir. Paris é amante de mascarada onírica. Diverte-me a labuta ensandecida da mulher na ansiosa espera do resultado, que será pateta e desconexo, da união de uma tonta a luas de reflexo.
Penteia-me o cabelo ainda molhado. Retoca-me. Diverte-me.
o colar depois.
Roda no fim o espelho sobre o eixo que o sustenta preso ao tripé doirado de barroco.
Na luz difusa da manhã que entra, o que vejo emudece a minha alma pasma. Longa e escura e ruiva e anil esguio, a reflectida, é estranha a mim. Não reconheço a figura emoldurada em ouro. Demorada de enigmas, de subtilezas e de secretos sinais plena e repleta, anil e oiro e ferro, como os caixões das gôndolas de outro lado. Nada sobrou de mim e assombrada deixo-me levar, muda de espanto, ao perceber que no espelho existe uma criatura que pertence à espécie de que a minha irmã é o exemplar mais que perfeito.
- Et voilà, ma chérie! Paris à tua frente.