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A tarde disposta ao silêncio, espalhada no chão.
O meu corpo na penumbra, de vigia. Os meus olhos na sombra, os meus sentidos no escuro.
Escondida na obscuridade de um murmúrio, há na minha boca o sabor da transgressão. Um sabor rugoso de madeira ressequida. Tenho o direito de tentar compreender a minha ausência nos universos velhos femininos desta casa. Quero saber do ritual benéfico e do feitiço maldito, da prática secreta, da velha e encoberta fórmula de encantar.
Nesta tarde que se deita sobre a cama. Tarde de menina morta de olhos fechados, de caracóis pousados na almofada e colar de pérolas tombado, vestido azul escuro, enfolado, com pequenas flores, raminhos bordados.
Um fio de voz imperceptível, o fio de uma aranha, um fio de navalha. O fio ténuo e fino e perdido da voz da tarde a desfiar as feridas, a traçar os mapas e as marcas da dor, a descrever as mágoas. No corpo da tarde pousam as palavras, os dedos e os medos sussurrados das mulheres. Em cada palavra que não quer ser dita tudo parece consumado e o silêncio é maior que o resto.
O entardecer é colocado no lugar habitual empurrado com um gesto dócil.
É o momento dos desertos em que a solidão ondula e a dor prevalece como um cardo.
A casa inteira anoitece devagar.
No Douro há sempre tempo para tudo e dentro deste tempo compreendo o ritual diário destas mulheres, aquela quase dança de ternura e de deslumbre, aquele quase crime, aquela quase entrega de desmesurado amor. São estas mulheres que trazem encarcerado o corpo da casa. Ficam à espera que o silêncio chegue, ainda que fugaz, e nos conte, contando no corpo da casa, das marcas sofridas nos corpos de carne.
Depois de novo o silêncio.
As mulheres do Douro são silêncios.
Aqui é bom o silêncio. É bom estar calado. É bom não dizer. É bom não ter corpo. É bom não pensar.
É bom ser só casa.