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A senhora não encontra o isqueiro.
Procura-o, discreta, na carteira preta de verniz Cartier. Sorri. Não me quer interromper.
Falo do meu não saber do nome das ruas, porque todas as ruas eram o outro rosto. Falo-lhe do meu não saber da cor dos rios e do meu não saber da curvatura das pontes, porque todos os rios eram outros braços e porque entrava neles de olhos fechados, porque todas as pontes eram outros olhos, todos os arcos eram outros lábios.
A senhora brinca com o brinco. O fumo invade-lhe o cabelo mesclando de cinzento as ondas brancas puras.
Falo-lhe do medo que sentia quando ele vinha tarde pelas nocturnas ruas de chuvas e de esperas. Falo-lhe dos risos desatados nas avenidas soltas e desertas pelas horas, de mãos dadas a desfiar palavras. Falo-lhe das promessas, das certezas, dos seguros muros que nos resguardavam, da eternidade presa por grades de penas e de nuvens.
A senhora esmaga o cigarro contra a cigarreira aberta. Breve, a cigarreira, e não lha deu a mãe, mas o amante numa cidade longe no tempo e ocupada.
Falo-lhe dos ferros que me entraram no cérebro, não no coração, que o tinha dado, quando a porta não abriu por não haver ninguém do outro lado, por ter ficado fora, por ser apenas uma a mais, apenas uma a mais, a mendigar abrigo. Falo-lhe das escadas em caracol de espera, só para suplicar que me dissessem porque não podia amar demais. Falo-lhe da certeza de que o amor assim inadiável é o único amor que merecemos sentir.
A senhora e a chávena. A senhora beberrica. Sorri. Não quer interromper. Brinca com o brinco. Retira outro cigarro. Procura as ondas brancas do cabelo e inclina levemente a cabeça enquanto espera.
Falo-lhe dos braços que me vieram arrastar. Falo-lhe dos abraços a recolher pedaços. Falo-lhe do ódio que gosto de sentir. Falo-lhe das vielas de uma alma suja onde gostava que ele morresse ou que sentisse o mesmo que senti, que é a mesma coisa. Falo-lhe da desmesurada, deserta desolação das ruas que vivi depois de ter morrido.
- O ódio, minha querida menina, é apenas a máscara escarlate pousada na gôndola do carnaval do amor. É a indiferença que afundará Veneza. Procura a indiferença. Quando a encontrares, podes tornar a amar o que perdeste dentro da alma desse homem perdido.