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Lembro-me como descobri o miserável preconceito que carrego.
Era Inverno e o homem olhava sem perceber que o via. Habituei-me àquele olhar e sei de todos os lugares onde ele chega ou nos quer levar, porque se vê de longe.
Levantou a gola grossa do casaco azul de marinheiro, apertou os botões velhos com âncoras gravadas e uniu com força os dedos enluvados de modo a que o couro das luvas se ajustasse melhor aos movimentos das mãos. Sorriu com vento e gaivotas empurradas aos gritos e aos guinchos no meio de rajadas com uivos de frio.
Ouvia o barulho das abas do mar batido e encolhia os ombros, curvava ligeiramente a coluna a tentar esconder a face exposta ao frio, afiando a cabeça na direcção do vento, a seu favor - do vento, que tem apenas um casaco marinheiro abotoado.
Adivinhava-lhe as mãos geladas. Escondia-as cruzando os braços, enfiando-as nas axilas e batia com força cada passo que dava no granito do passeio de modo a que o vibrar da pedra assim batida lhe quebrasse a certeza de que o gelo lhe ferrava as solas dos sapatos.
A mulher aproximou-se.
- Tens lume? - uma minimalista.
Não. Não tinha lume.
Brincou, reproduzindo o estafado apalpar dos bolsos e disse de súbito aquilo que eu sabia:
- Mas tenho um corpo lindo! - fez aparecer na cara duas covas ao sorrir.
Apesar do queixo voluntarioso, o nariz aquilino e a forma como as madeixas de cabelo se comportavam como asas de pássaro apanhado em desespero de armadilha, mantinha um ar tímido que o frio acentuava entregando a sensação de que havia pressa nos olhos ansiosos daquele homem. Uma aceleração das emoções ou dos desejos, uma urgência de dizer o que não quer, provocadas pelo medo de gelar, de ser picado pelas gaivotas que gritavam lancetadas pelo vento como farrapos de cabelo desnorteados.
A mulher tinha feições que esqueceria logo que o vento amainasse e o meu casaco se fechasse sobre o entardecer friorento de outra praça, de outra Avenida e de outros rostos. Era loira, oxigenada e frisada e afagava os cantos da boca inflamada de batom. Apenas isso.
- Não beijo na boca - minimalista e rotineira.
Diz-lhe depois dos preços com a serenidade de quem atira um orçamento que se sabe pobre e sustentável.
- Não tenho dinheiro e beijo bocas.
- Só faço isto por causa das propinas.
- Tenho a certeza que sim, mas não tenho dinheiro e beijo bocas. Desculpa.
Ofereceu um serviço mais barato e não abrandou o passo quando o recusaram. Seguiu-o e falou-lhe de praças desertas nas horas mais pardas e nas avenidas paradas como esconderijos. Deixou-se de saber se é negócio ou ócio o sexo daquelas prestações.
Desceu as escadas. Depois o declive que a levava a areia. Encostou-se ao muro à espera com a mão na virilha e os olhos levantados de promessas por orçamentar.
- Tens de procurar outro. Eu estou só à espera de uma amiga.
A gola do meu casaco grosso levantada e o vento a zunir à minha volta.
- Vê o que as tempestades nos podem fazer.
Estava mais velho o homem e ainda mais perfeito por estar só. Todas as solidões são maiores que a vida.
Afastou-se a mulher oxigenada e de unhas pintadas de vermelho do muro das promessas e das propinas por pagar.
- Eu sei que tu tens lume – murmurei-lhe.
Com o braço marinheiro cobriu-me o ombro e num sussurro que o vento apanhou e fez desfeito:
- Um pouco mais de sol, eu era brasa.
Foi este exacto momento que me fez perceber que jamais conseguirei compreender as prostitutas. Nunca entenderei esta espécie de violação consentida a troco de dinheiro. Não concebo qualquer razão que a justifique e sinto que a redenção, o aclamado heróico redimir, o engrandecido já fui, mas já não sou, não é mais do que uma espera até que a vida encontre novas pedras que fazem tropeçar.
Não consigo - não quero - aliar-me aos benévolos e benevolentes que conquistam a força de carpir a infelicidade que empurra estas mulheres para estas esquinas, nem sei sequer admirar e ampliar as que se dizem delas descoladas.
Até o vento a ganir não apaga, não empurra com um golpe de asa, uma mulher que se sente a desfazer.
Ilustração - Beesse para A Gaffe e as Avenidas