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Deram-se por concluídas, depois de vários meses de penar, as obras no meu apartamento num dos mais interessantes arrondissements parisienses. Foi necessário esperar vistorias, inspecções e aprovações camarárias e de várias outras entidades que pesaram no tempo como chumbo, foi obrigatório obedecer a regras que determinavam a espessura das paredes, autorizavam o derrube de outras tantas, especificavam o traçado das condutas, proibiam adulterações na fachada, indicavam indispensáveis normas energéticas, isolamentos térmicos e acústicos e demasiadas outras coisas que arrastaram durante meses a finalização da obra.
As alterações - que foram profundas - estão assinadas pela minha irmã o que justificou o meu total alheamento ao desenrolar da metamorfose. O traço do génio não requer palpites dos que sem talento se apressam a duvidar do que se já se ergueu na perfeição. A mosca no topo do bolo.
Está pronto a habitar. Espera a locatária que decidiu utilizar estes dias para o percorrer.
O espaço está irreconhecível.
Há paredes que desapareceram, quartos que se uniram duplicando a luz doirada que jorra das janelas longas e largas protegidas apenas por portadas de madeira, soalhos afagados que contrastam com o branco pérola erguido num soberbo pé direito e tectos recuperados que tocam o barroco e nos deixam pasmados por os termos ignorado tanto tempo. Há novas e inúmeras entradas de luz, novas esquinas, novos recantos. Há uma parede inteira coberta por estantes destinadas a acolher parte do que me foi entregue. Há a geometria do rigor minimalista dos parcos móveis escolhidos com um critério agudizado pelo conhecer vastíssimo da seleccionadora, misturados com os que chegaram de casa dos meus avós e que adquirem aqui a majestade que era atenuada pelos companheiros de outrora.
(E há duas telas de Denis Sarazhin, uma das minhas grandes e mais obsessivas paixões.)
É sem dúvida um espaço extraordinário.
Há no entanto a marca indelével da autora que defende, desde o tempo do início, o conceito de arquitectura do inquieto.
Não a podemos ler de modo literal. Não é uma inquietação que se constrói na angústia ou no desconforto que magoa e que nos torna ansiosos. Não é uma inquietação proveniente da falha que urge colmatar ou um sentir desenraizado que nos impele à procura ou à fuga. É um desassossego subtil que nos invade, que extravasa do desenho das paredes; da forma como se encaixam umas nas outras em surpreendentes ângulos; do modo como a luz é dominada por planos que a interceptam; da posição e localização dos móveis; da geometria desconstruída que permanece incólume mesmo assim; do despojamento inicial do espaço que é ao mesmo tempo invadido por memórias complexas e ocupado por objectos pesados que paradoxalmente acentuam um minimalismo cuidado e inteligente; de uma espécie de harmonia disfuncional que nos provoca alguma perplexidade e nos faz permanecer no seu interior, impelindo-nos a sair ao mesmo tempo. Impede a passividade.
Esta arquitectura do inquieto transforma o construído num organismo vivo, impulsionador de movimento, capaz de interagir com o ocupante, deixando-se dominar por ele, dominando-o. Não é nosso. Não somos dele. Coabitamos. Uma simbiose constantemente renovada.
Não é possível descrever com maior nitidez o conceito defendido. Fico sempre aquém da sua autora que se ilumina quando nele toca, mas sinto que este espaço que vi deslumbrada e que me entrega a condição de flâneuse, talvez seja aquele que a minha irmã desejou para ela.
Esta sensação traduz o meu mais profundo agradecimento. Não é fácil ceder, mesmo por amor, o que em nós, cá dentro, nos inquieta a vida.