Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
As mãos da mulher cheiram a alho, mas todos os seus gestos espalham cheiros e sabores como se tivesse de espargir por onde passa a inconfundível certeza de cozinhas grandes onde cada segredo é enfarinhado, empoado, macerado e só depois recolhido no escuro da despensa, amarrado com fio do norte ou introduzido em bojudo e opaco pote com tampa de cortiça.
Cheiram a alho as mãos, mas o olhar tem rosmaninho e tem palavras com travo de pimentão-doce e outras de canela ou de carvinho.
Se deixar correr a água pelos dedos desaparece o cheiro. Que te fiquem os anéis e leve a água o gosto empeçonhado. A mulher calada, com rosmaninho nos olhos e riso pé de salsa.
Tinha-a visto separar os dentes de alho, espalhando cada um na mesa de madeira, escolhendo os fortes, cheirando e farejando cada casca, cada polpa, cada película branca e fina como véu de noiva camponesa. Tinha-a visto sorrir e cravar a unha na esbranquiçada meia-lua que me dava a cheirar depois de apunhalada e recortada.
- São estes os melhores, menina. Veja como largam sumo quando os corto. Quer ver como se faz? Experimentar?
Pego na meia-lua e tento com a vontade e as unhas de menina mimada, nascida em faz-de-conta, lanhar a pele, a película que protege e recobre a polpa carnuda daquele aroma inteiro e prepotente.
A mulher sorri. Senta-se no banco de madeira e de mãos nos joelhos afastados. Observa-me com atenção redobrada.
- Use a faca para cortar primeiro o lado mais grosso do dente. Vai ver como depois é mais fácil amanhar o resto. Pode esmagar tudo com a faca deitada sobe o alho que logo sai a casca ou pode descascar primeiro e picar tudo fino.
- Quem te ensinou tudo isto?! Tu sabes tudo!
Ri-se.
Que ninguém lhe ensinou nada na vida, que os pobres, menina, já nascem ensinados.
- Não é o cheiro do alho que trago nas mãos, é o cheiro dos pobres. Olhe a menina que mesmo se esmagasse todos estes trastes, não lhe ficava réstia de cheiro nos dedos. Já nascem a saber os pobres, minha menina. Rebentam as águas à mãe porque sabem que há que as ver correr debaixo dos moinhos.
Depois, e a rir, tira-me das mãos os alhos por partir, empurra-me para fora da cozinha e fecha-me na cara a porta do domínio.
Levo os meus dedos ao nariz. Farejo, procuro, inspiro, cheiro, aspiro, insisto e volto a farejar.
São inodoros.