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Ao almoço, no Douro do fim das vindimas, a mesa de toalha branca, luminosa, enche-se de vozes.
As janelas são rasgadas, abertas, veludos afastados, presos por argolas de ferro e ferrugem. Despojada da sombra, a luz vem tímida tocar o barroco do centro de flores e de frutos.
As mulheres fazem tilintar talheres que desconhecem, pratos e sopeiras, molheiras, galheteiros, jarros e garrafas velhas de cristal. Há tremuras no ar e rodopios do vento dos aventais bordados. Há correria e nervoso, resmungos das velhas e murmúrios das outras. Um homem sorri, gengivas sem dentes, ao ver passar a pingadeira, onde o arroz fumega depois de servir de base ao cabrito. Escaldou os dedos à mulher blasfema.
Os estilhaços de copos de tacão alto fazem tremer a mais novinha, criança ainda, desengonçada e loira. Que saia daqui que só atrapalha! Que saia dali, com cabelos loiros e olhos de amêndoa, a menina tonta que largou o copo de cristal antigo e pé de cegonha nas tábuas do chão.
Corre, corre, corre que chegam os homens!
Corre, correr, corre que entram na sala e a senhora não está para os receber!
Corre, corre, corre que tens de a chamar!
Corre, corre, corre, menina que parte os copos antigos. Não vás a chorar.
Os homens almoçam na mesa coberta por toalha rara. Os homens já falam. Perderam o medo dos talhares confusos e dos copos altos raiados pelo vinho. Perderam o medo da menina rica vestida de azul ao lado do irmão com olhos da cor do vestido dela. Aquela a que chamam, num sussurro ínfimo, menina de fogo e que lhes pisca o olho sempre que se enganam e que troca os garfos como eles os trocam ou que principia antes de os trocarem para não haver mais trocas na mesa.
Corre, corre, corre, corre e rodopia, menina de fogo! Vê muito depressa como tudo é claro.
Roda, roda, roda e vai ver num instante como tudo é simples nos olhos dos homens que trazem toalhas de linho e bondade pousadas nas almas, de linho lavrado, estendidas frescas num tempo passado.
Não vás a chorar.