Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Recupero hoje uma memória.
Às vezes parece-me envelhecida, longínqua e atenuada pelo enrugar da espiral do tempo. Erro meu, que o amor é ardente e má é a fortuna.
Queria muito que fosse partilhada com o meu queridíssimo Fleuma, porque raros são os homens que me ensinam a chorar.
19-10-2014
Quando o meu avô morreu, a Lua chorou um choro baixo. Um fio fino e transparente de lágrimas que durou dois dias e duas noites só findo quando a minha avó lhe entregou a manta de lã que o meu avô usava para cobrir as pernas nas tardes do jardim mais frio.
A Bórgia foi arrastada para a jaula.
Não mais dormiu aos pés da cama. Deixou de entrar em casa, a não ser para farejar a cozinha à espera que alguém se comovesse com o olhar de súplica do monstro e lhe oferecesse a provar, à revelia de todos os conselhos, ordens e recomendações, um naco de carne que a Jacinta tempera com alho, vinho, cidra e ervas aromáticas.
Facilitou durante bastante tempo a entrada das visitas. Se antes se tornava um perigo tê-la solta quando na casa havia gente alheia aos seus domínios, era fácil depois fechar-lhe a porta e gradear o bicho.
Quando a Lua adoeceu, a Bórgia acordou prostrada. Chamaram-na e ela não veio.
Fomos esbaforidas e aflitas de encontro às velhas amigas.
- Deus nos valha, menina, que a cadela piorou tanto.
A Bórgia.
A assassina doida que esfacelava móveis e esfarelava as carnes dos incautos, subitamente velha agora nos meus olhos, que velha é há tanto tempo aos olhos dos que a temem, perto da Lua entristecia. Ninguém a conseguiu retirar do lado da amiga.
Trouxemos o veterinário.
- Que tossiu sangue, Senhor Doutor. Piorou tanto!
O homem entrou para observar a Lua adoecida. Saiu depois inútil, desolado. Acompanhava-o a minha avó que em silêncio ouviu o veredicto. A minha querida Jacinta atrás, a tropeçar nas pedras e a amarfanhar com as mãos o avental e a dor.
A Lua treme, inquieta. Tosse e cospe sangue.
Abre cavernas na minha garganta e faz o fel golfar enchendo tudo.
Eu ali de pé, ali cravada, muda, seca, hirta, ressequida?
Abro a porta e entro e de joelhos abraço a cadelinha, a beijo a soluçar.
A Bórgia a ganir muito de mansinho.
Deixo de saber se é sangue ou se é o meu cabelo que se espalha na manta que foi do meu avô.
A Lua morreu de manhãzinha.