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Aproximem-se comigo da janela. Afastem os cortinados de brocado escuro e ouçam o barulho ríspido das argolas de metal. Depois vejam comigo. Não quero filtrar nada. Eu digo quando quiser ficar sozinha.
É Inverno. São seis horas da manhã. A luz é um cinzento infante tímido lá fora. Chove devagar. Uma poeira apenas.
No terreiro o grupo de homens reunido tenta afastar o frio batendo com os pés no chão de lama e esfregando os braços com vigor. Um deles tenta aquecer-se soprando bafo quente na concha formada pelas mãos unidas. Trazem samarras com golas de pêlo ruivo de raposa, calças de fazenda grossas e imperfeitas e botifarras velhas, corrompidas. Um deles tem um gorro de malha mesclada que lhe distorce a cabeça, aguça-lhe o crânio.
Ouvem o homem alto, destacado. Traz vestido um impermeável preto, almofadado, com a textura de borracha. Demasiado largo, rectangular, pela coxa. Os punhos revirados soltam pombas brancas que esvoaçam no gesticular das mãos que apontam os destinos dos que o ouvem.
Tem um trapo cor de terra enrolado ao pescoço. Uma tira enorme de tecido que lhe esconde o queixo, calças de bombazina preta que se enfiam nas galochas com solas cor de lama e cano que reluz húmido e negro.
Agora uma mulher tosca e rude e grossa, aproxima-se do grupo. Traz aberto um guarda-chuva grande, de cabo de madeira escavacado. Procura abrigar o homem de galochas que de repente se volta contra ela e se agiganta. Afasta o mostrengo e berra-lhe. Daqui percebo o medo da mulher que recua atarantada. Quase tomba. Os homens desviam o olhar. Um deles afasta-se do grupo e do bolso retira o maço de cigarros. Depois a brasa de um, no meio do cinzento.
Disperso o grupo, o homem de galochas fica só, ali parado.
A chuva tenra, a lama e um homem só, parado ali, até sentir a água a tocar-lhe as mãos agora sem sentidos. Começa a andar. Deixo de o ter então ao meu alcance.
Conseguem ver?
Agora sim, quero ficar sozinha.
Não sei o que se deu ali. Não faço ideia, e este desconhecer dá a liberdade de poder atenuar todos os gestos. Transformar em águia as ordens que humilharam. Podia mesmo descrever a cinza da manhã como pronúncia de um Douro que de agreste e abrupto perde cor. Podia olhar o homem das galochas e entregar-lhe a vertical postura de uma árvore. Podia olhar por mim, sem vos mostrar ou descrever apenas o que de dentro vi sozinha.
Nada em nós é tão seguro como o saber que não há almas isentas ou impolutas. Sabemo-lo de cor, de coração inteiro, e às vezes temos medo do desgosto, da prepotência, da tirania agreste e quase violenta e da mais crua e nua dor que provocamos mesmo sem saber naqueles que nos querem, mas que não queremos.
O homem de galochas que comigo viram talvez seja um decepado. Cortaram-lhe os sentidos. Talvez sinta apenas fantasmas de emoções. Talvez seja a terra dura que por ele sente e que com ele dorme e dentro do sono lhe conta o que tem dentro, do que a morte lhe entregou para guardar, ou talvez não ame quem o ama, pois é desta forma que se torna fácil fazer brotar do chão da alma a maldita flor da ingratidão.
Passaram as seis horas da manhã daquele Inverno. Já não chove e tudo é simples.