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(Para a minha pequena sobrinha)
Ao contrário do que pensam, o Grande Espírito dos Bosques não é grande. É bem mais pequeno do que a mais pequena das Fadas. Usa pantufas de pó de veludo onde estão colados pedaços de nuvens. Parece mais alto quando as tem calçadas, mas tornam-se incómodas para o equilíbrio. Como é distraído traz os bolsos do seu casaco às riscas cheios de Memórias. As Memórias são pequenas borboletas que volteiam, rodopiam, passam e esvoaçam sempre que o Grande Espírito dos Bosques se esquece dos sítios secretos onde guarda os óculos. Feitos de duas gotas de orvalho, os óculos quebram o espaço. É com eles que, entre muitas coisas, se está presente nos mais importantes acontecimentos e se analisa o trabalho das Fadas. De utilidade extrema, como se imagina. Com eles se corrigiu o pequeno engano que levou uma Fada a pintar de negro uma tulipa só! Com eles se apurou que as camélias não podiam ter perfume porque a Fada que delas tratava espirrava sempre que era lançado o aroma final. Com eles, enfim, se aperfeiçoam tarefas.
A tarefa das Fadas, fácil é de ver, consiste em pintar no Inverno as flores do Universo para que cintilem na estação seguinte.
Ao entardecer, mal a neblina se atenua, saem de suas casas prontos para o trabalho. Parecem envolvidos pela poeira de prata que lenta se perde pela tarde fora. As mais pequenas dançam e desfolham no ar todos os aromas. São responsáveis por flores pequeninas, como o malmequer ou a dedaleira ou a violeta que partilha as cores com amores-perfeitos. O caminho cheira a hortelã-pimenta, alecrim, cidreira, zimbro e rosmaninho, salva e manjerona. As Fadas mais crescidos seguem logo atrás, discutindo técnicas usadas, matizes e artifícios que vão descobrindo nos seus afazeres. Delas dependem as flores mais complexas ou mais caprichosas. Rosas e gladíolos, tulipas, orquídeas e lírios, camélias, begónias e dálias, junquilhos, girassóis e cravos, papoilas, nardos e nenúfares, entre tantas outras que de tantas, tantas, o Tempo se cansa de as contar a todas. Seriam pintadas pela noite dentro.
Tu és a Fada que gosta de rosas.
Começaste por pintar miosótis e eras perfeita. O azul das pequenas flores era tímido, doce e cheio de céu nos dias mais calmos. Depressa o Grande Espírito dos Bosques te responsabilizou por flores mais complexas. Passaste a pintar papoilas e de novo a tua perícia foi notável. O vermelho era intenso, como o dos rubis quando o sol lhes toca, e o brilho negro do interior da flor parecia o das penas das asas dos corvos. Cedo alcançaste as flores mais difíceis, as que exigem mais concentração e são entregues às mais experientes.
Agora pintas as minhas rosas brancas, quando os ferrolhos e as aldrabas parecem mais suaves e uma lamparina de óleos raros derrama a cor do ouro nas paredes. Quando de noite uma estrela cai, se desprende do negro, procurando breve os braços inúteis da lua para não tombar. Um traço de medo e depois silêncio. Rápido, como a vida dos sonhos.
Agora pintas as rosas de neve e nos teus olhos a lua toca o peso do luar na sombra mais azul que as rosas inclinadas desenham sobre a terra. De nuvens transparentes, chega o orvalho e os longínquos recortes das montanhas que a noite desbotou. Longe se erguem os gigantes de pedra e de ferrugem. Longe a névoa esconde os picos mais agudos. Longe a luz desliza escura pelo dorso enrugado das vertentes. Longe as escarpas e os abismos soltam os ecos da melodia do frio.
- O Longe o que será?
Perto, tão perto de mim, o longe és tu, a pintar rosas.
Ilustração - Daniel Merriam