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O mais maravilhoso dos meus amigos é moreníssimo, possui uma juba leonina, com caracóis soltos, negros, descontrolados e olhos pretos como carvão. É um homem belíssimo. É também agreste e indomável - características mediterrâneas herdadas do pai, que a mãe tem a suavidade frágil e aparentemente submissa que quase sempre acompanha as elegantes de gema, - pratica pólo aquático desde criança, é professor agregado numa das mais prestigiadas Universidades do mundo e vai de bicicleta para o trabalho.
Estas especificidades fazem deste maduro trintão um magnífico exemplar da espécie e muitas vezes penso que se a divina Natureza tivesse de organizar um catálogo, esta criatura poderia figurar na capa.
É evidente que tem defeitos tenebrosos. É irascível, mal-humorado, rezingão, muito pouco social e sobretudo implacável com os responsáveis pelo mais pequeno deslize que implique uma falha na análise da relação complexa entre Aschenbach e Tadzio ou a localização desta particular obra de Thomas Mann numa Veneza de Inverno.
O magnífico e poderoso guerreiro não entende rigorosamente nada de trapinhos. É cego e surdo - tendo uma voz tonitruante - em relação àquilo que veste e apunhala os invasores que lhe sussurram ao ouvido que os tons cor de terra não são os que mais o favorecem.
Usa invariavelmente camisolas de gola alta e casacos de tweed, espinha ou texturas subtis, com cotovelos protegidos por ovais em pele, calças de sarja – normalmente chinos, - apertadas por cintos de couro corroído e arrogantes e robustos sapatos picotados de solas possantes. No Verão, a imagem não se afasta muito destas características, substituindo apenas a textura e espessura dos tecidos e trocando as golas altas pelos colarinhos de camisas brancas.
É inevitável o ar absolutamente vintage que contribui de forma decisiva para o seu encanto e fascínio.
O apelo a um dos meus mais queridos amigos não é inocente - raramente o sou. Existe porque me recordei que, quando lhe fizeram notar a indiferença com que tratava o seu guarda-roupa, respondeu de modo ambíguo e um bocadinho irritante:
- Se não ando atrás das modas, a moda virá atrás de mim.
A premonição acaba de se cumprir e, mais uma vez, o homem sorri desdenhoso e sobranceiro.
Nunca como hoje o allure masculino que nos empurra para um tempo quase proustinano foi tão reforçado e elogiado. Ser-se vintage é possuir um je ne sais quoi imprescindível a uma urbanidade que pretende ser cosmopolita e perene.
Esta busca de um tempo perdido está ligada, como não poderia deixar de ser, àquilo a que os peritos chamam frustração do presente e às convulsões e desilusões sociais e societais que invadem o quotidiano do mais comum dos mortais. Este retorno à uma ilusão de segurança e solidez passada pode ser insidioso, insinuado e insinuante, mas surge de forma clara na actualização, visível a olho nu, sobretudo das correntes de rua.
Cíclico e circular, até este movimento se faz ao som da Lei de Lavoisier, repescando e tornando actual a imagem vagamente anacrónica de um homem que acaba perseguido e apanhado pelas mais recentes tendências da ilusão dos trapos.