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A primeira e última vez que a Gaffe andou num táxi, concluiu que deveria ter fretado um helicóptero. Ficava mais em conta, em linha recta, apanhava ar fresco e chegava a tempo e horas ao destino, sem pensar a todo o instante que ia sofre um AVC.
Esta rapariga sai de um aeroporto, vinda já não se recorda de onde, e fica a saber que ninguém a consegue ir retirar de um calor imenso de ananases, comprovando-se mais uma vez o quanto a humanidade é capaz das maiores atrocidades sem que as boas pessoas se indignem.
A Gaffe sente-se no dever de avisar que as malas Prada não são as indicadas para arrastar nos pavimentos de granito. As rodinhas são minúsculas, metem-se nos dentes dos rochedos e fazem com uma criatura sinta que foi ao dentista e que o homem lhe enfiou o berbequim no cérebro. Não se adiantam outras hipóteses, pois que Serralves espreita.
Convém referir ao mesmo tempo que é de evitar pedir ajuda àquela espécie de militar que cruza as mãos em frente da pila, abre muito as pernas e se perde em meditação, focado num ponto que fica sempre uns malditos centímetros acima das nossas cabeças. Aponta sempre um dedo silencioso para um lado qualquer como se o estivesse a enfiar no rabo do papa, ou seja, muito lentamente e com pouca convicção e, com um esforço visível, ronca:
- Circule, faxávor.
É gente pouco recomendável.
A Gaffe, absolutamente esgrouviada, de lenço Hermès – não há outros, pois não?! - a ensopar-lhe os caracóis, vestido sedoso e frágil colado ao corpo - em insinuações que não agradariam de todo ao Conselho de Administração de um qualquer Museu -, e sabrinas Chanel - as pretas e brancas com picotados e lacinho de morrer de lindo -, tenta abrir a porta da carripana mais próxima.
Não. Aquilo estava em fila. Tinha de fretar o da frente.
Lá vai formosa e não segura – será que Camões já foi liricamente retirado do cardápio dos Iphones daquelas coisas adolescentes que vivem no instagram? -, tentar socorrer-se do primeiro da fila, senhor abastado de carnes e anafado de pêlo, que se tinha colado ao banco, apenas com a capacidade de mover a cabeça e esticar a manápula para forçar o manípulo da porta.
A Gaffe entra na cápsula do tempo perdido em busca de sombra, pois que é uma rapariga em flor.
- É p’rá d’onde?
No Douro, um dos petiscos mais populares é constituído por uma cebola crua, embutida em sal e vinagre, que se morde e mastiga misturada com broa. Depois os homens vão aniquilar os fungos das videiras, com o hálito.
O senhor taxista tinha decidido erradicar o míldio, logo ali, de vez.
A Gaffe balbuciou o endereço e o homem arrancou de cotovelos erguidos.
O albatroz que ronca.
A Gaffe vislumbrou o massacrado Iraque invadido injustamente por chusmas americanas, pois que as armas químicas se concentravam, isso sim, nas axilas do condutor do tanque onde esta rapariga amaldiçoava Blair, Aznar e Barroso, para se abstrair do drama que vivia em carne viva. A outra versão rondava defuntos em campos de batalha medieval, mas era alternativa inaceitável tendo em consideração que a idade Média era mais limpinha e não havia plástico para espalhar pelo chão dos viículos montorizados.
A Gaffe olhava para os lados, tentando não mexer a cabeça com receio de a perder.
A Gaffe sentia que um movimento seu podia desencadear uma conversa ou um homicídio.
A Gaffe temia que uma prosa desacorrentada incluísse a luta de classes. Embora pronta e apta a imitar um comunista russo, um herói da Alemanha de Leste, um guerrilheiro cubano ou até Frida Khalo a cuspir para o chão - uma rapariga esperta sabe sempre como sobreviver nos desertos, mesmo nos ideológicos -, a Gaffe temia que o homem fosse o Franco expulso finalmente do Escorial, tendo em conta o cheiro.
O senhor cantava pelo caminho.
A meio do percurso, esta rapariga petrificada apercebeu-se que havia naquele receptáculo de missa negra uma voz feminina, ao fundo, que acompanhava o vozeirão tonitruante do cantor:
Tá turbinada
Tá toda turbinada
Tá turbinada
E não lhe falta nada
A Gaffe aceitou o suplício com a abnegação daquelas raparigas muito desprendidas de bens materiais que depois ouvem vozes e morrem assadas. Uma Joana d’Arc.
Cerrou os olhos. Acariciou a sua única amiga, a maldita mala Prada pesada que o senhor tinha ignorado quando percebeu que a tinha de enfiar na carripana e esperou a morte que poderia sobrevir a qualquer momento, por afogamento – a Gaffe diluía-se sem ar condicionado -, ou carbonizada. Que viesse o taxista e escolhesse.
Chegou ao destino depois de ter feito um percurso turístico pelo Porto inteiro afogueado. Um pouco mais de sol e era brasa.
Pagou, sem piar, fugiu sem asas e chegou apenas com penas.
O único consolo que lhe resta reporta-se ao karma. A Gaffe sabe que no algures perdido do século XX, os confrontos entre os antigos e velhos cocheiros de Lisboa e a Companhia Nacional de Auto-Transportes que inaugurou o serviço de carros de praça, deu no que deu. Já nessa altura se ouvia gritar:
Tàxis über alles!
Über alles, meus queridos.